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terça-feira, 17 de novembro de 2015

Entrevista com Marcos Bagno - “O português brasileiro precisa ser reconhecido como uma nova língua. E isso é uma decisão política”

Um dos mais importantes linguistas do País, professor da UnB diz que na academia se faz política o tempo todo e se assume militante da causa do idioma nacional

Foto:  Fernando Leite/Jornal Opção
Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

Marcos Nunes Carreiro e Elder Dias
Na quarta-feira, dia 10 de junho, se comemorou o Dia da Língua Portuguesa. A data marca a morte de Luiz de Camões, em 1580, considerado o maior escritor da história de Portugal. A depender do professor Marcos Bagno, talvez essa data pudesse mudar para o dia 29 de setembro — a data da morte de Machado de Assis, em 1908. O autor de “Preconceito linguístico: o que é, como se faz” é também um assumido acadêmico militante. E com causa definida: luta para a oficialização de uma nova língua, o português brasileiro. “É preciso dizer, com todas as palavras, em alto e bom som: o português brasileiro é uma língua e o português europeu é outra. Muito aparentadas, muito familiares, mas diferentes”, resume.
Para ele, já existe outro sistema linguístico totalmente diferente do português lusitano no português falado hoje no Brasil. E Bagno, nas palestras que faz em congressos e seminários por todo o Brasil, leva, em slides e apontamentos, as evidências científicas do que afirma. Mas não é na ciência que baseia o sucesso da empreitada: “O cientista tem de assumir uma postura política e ideológica. Tem de declarar suas explicitamente crenças e seus valores. Não existe ciência neutra. Não existe nada que se faça em sociedade que não seja de forma política”, declara.
Doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), Marcos Bagno é professor do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília (UnB). Em 2012, seu romance “As Memórias de Eugênia”, ganhou o Prêmio Jabuti, considerado o maior da literatura brasileira. Ele também escreve uma coluna sobre língua portuguesa na revista “Caros Amigos”.
Por que o sr. defende uma gramática brasileira?
Pela necessidade que vimos detectando, há muito tempo, de que tenhamos no Brasil instrumentos descritivos, e até mesmo normativos, que apresentem, da maneira mais honesta e real possível, a nossa língua: o português brasileiro. Mesmo as variedades urbanas de prestígio são muito diferentes da norma padrão veiculada pela tradição gramatical da língua. Faço a citação de um linguista português, o professor Ivo Castro [da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com doutorado em Linguística Portugue­sa]. Ele diz o seguinte (lendo): “Minha opinião de que a separação estrutural entre a língua de Portugal e a do Brasil é um fenômeno lento e de águas profundas, que é fácil e, a muitos, desejável não observar, assenta-se no convencimento de que a fratura do sistema linguístico existe, mas não é aparente a todos os observadores nem é agradável a todos os saudosistas.”
Muitas vezes quando nós, brasileiros, falamos sobre a necessidade de reconhecer o português brasileiro como uma língua autônoma e com um sistema linguístico próprio, ouvimos que isso é nacionalismo, maluquice ou desvario de “gente de esquerda”. Mas aqui eu trago a palavra de um especialista português que reconhece que, de fato, já existe uma “fratura”, como ele diz, que separa as duas línguas. São línguas muito próximas, claro, aparentadas. Mas já com características muito evidentes que nos permitem, de fato, fazer uma descrição mais própria do português brasileiro — inclusive usando esse nome.
Mas como fica a proposta de uma união linguística entre os países chamados lusófonos?
Essa ideia de que exista uma coisa chamada “lusofonia”, com vários países de língua portuguesa, é uma bobagem. É uma posição absolutamente neocolonial e que não tem nada a ver com a realidade. Não é nada mais do que um projeto profundamente português. Aqui no Brasil, quando se fala em lusofonia, as pessoas nem sabem o que é. Somos, no Brasil, 90% dos falantes de português no mundo. Então, se alguém tem de mandar na língua somos nós, embora os portugueses achem isso terrível (risos). Eles não têm a menor importância numérica no mundo, comparando-os ao Brasil, mas ainda têm esse saudosismo imperial de querer mandar na língua. Mas a coisa é diferente.
E a partir de que o sr. afirma que já temos um português brasileiro como língua?
Todos os exemplos que trago são extraídos da escrita de gêneros mais monitorados. Por quê? Porque, quando as inovações linguísticas atingem esse extremo [de estar aparente em textos mais formais, como jornais e revistas científicas], isso significa que a mudança linguística já se completou e se constitui então uma regra da gramática da língua. O professor Marcuschi [Luiz Antonio Marcuschi, linguista, professor titular da Uni­versidade Federal de Pernambuco e com doutorado na Universitat Erlangen-Nurnberg (Friedrich-Alexander), Alemanha], de quem eu tive a honra de ser aluno no Recife, estabeleceu, já há algum tempo, esse continuum de gêneros, do mais falado ao mais escrito, mostrando que não há essa separação rígida que as pessoas há 2 mil e quinhentos anos acreditam que exista. Na verdade, temos uma língua só e duas modalidades de uso [fala e escrita] com um continuum de gêneros.
A mudança linguística ocorre na língua falada mais espontânea. À medida que essas inovações linguísticas vão sendo adotadas por mais falantes, vão progredindo até chegar à escrita mais monitorada.
Mas então nós, brasileiros e portugueses, não escrevemos basicamente em um mesmo português formal?
Vou citar exemplos de fenômenos que já caracterizam a gramática do português brasileiro nas suas manifestações escritas mais monitoradas. Aquele papo de que “ah, na fala tudo bem, mas na escrita ninguém faz” é mentira. E a ideia de que pelo menos na escrita a língua nos une aos portugueses é falácia. A língua “zune”, não une (risos), porque tem muito ruído nessa história. Talvez em um extremo literário jurídico isso possa até fazer sentido, mas na língua escrita do dia a dia não é o que acontece.
Vou tratar de um único fenômeno para provar meu ponto, que é a questão da ordem das palavras. No português brasileiro, a ordem SVO [sujeito–verbo–objeto] — ou SVC [sujeito–verbo–complemento], como eu prefiro, porque nem todo complemento é objeto —, se gramaticalizou e se cristalizou, a ponto de reorganizar o processamento cognitivo que fazemos da sintaxe da língua. Com isso, ocorreram várias reanálises, que caracterizam hoje o português brasileiro de modo exclusivo, diferenciando-o não só do português europeu, mas também das demais línguas românicas. O português brasileiro é uma língua em que o papel sintático do sujeito, o papel semântico do agente e o papel pragmático do tópico são de primeiríssima importância.
E há muitas pesquisas que comprovam o surgimento dessa nova língua?
Os pesquisadores têm feito investigações interessantes mostrando que vários fenômenos do português brasileiro, de nossa gramática, se devem ao contato linguístico que ocorreu no Brasil, durante mais de 300 anos, com línguas africanas. A professora Charlotte Galves, da Unicamp [Uni­versidade Estadual de Campinas], por exemplo, tem publicado muito a esse respeito e de maneira muito convincente, assim como especialistas de outros países. Não quero, porém, tratar dessa questão do contato, mas do que hoje de fato existe.
Nós, como falantes, o tempo inteiro reprocessamos as informações que recebemos. Com o passar do tempo, esse reprocessamento vai alterando nossa interpretação dos enunciados. Isso é fantástico, nossa máquina gramatical na cabeça é absolutamente genial.
Na questão da concordância verbal, o enrijecimento da ordem SVC levou à reanálise de todo o constituinte posterior ao verbo como complemento. Assim, quando ocorre a inversão sujeito-verbo em verbo-sujeito, o sujeito é reanalisado como complemento, o que dispensa concordância, pois o verbo é considerado como unipessoal.
Então, no português brasileiro, tudo o que vem após o verbo é complemento, não há outra chance. Alguns exemplos: “A capital cresceu e com o desenvolvimento, veio também os problemas da cidade grande”, em texto publicado no “Correio do Povo”, de Campinas; “nesse contexto, podemos afirmar que resta ao professor de Língua Portuguesa apenas três caminhos a ser seguidos”, publicado com artigo em uma revista de linguística; “falta recenseadores para colher dados”, publicado no jornal “O Globo”. Ou seja, quando vemos esse fenômeno já instalado nessa escrita monitorada, é porque na fala isso já é uma regra praticamente categórica. Se gravarmos a fala espontânea dos brasileiros e das brasileiras no dia a dia, vamos encontrar 85% de não concordância de verbo quando o sujeito vem posposto ao verbo. É por isso que se diz, com a maior alegria, “oba, chegou as férias!” ou, na livraria, “já chegou os livros que eu encomendei?”. É o que acontece e isso já faz parte da gramática do português brasileiro. Outros exemplos: “A cada um minuto quatro coisas vendem” — vendem o quê?; “o pneu furou” — furou o quê? Para um português essa frase pareceria absurda, mas para nós, não. E esses são apenas alguns dos exemplos dentre os fenômenos com os quais podemos comprovar essa mudança na língua. Quem quiser se jogar do 15º andar fique à vontade, mas a língua mudou, e mudou dessa maneira.
E então podemos dizer que temos, de fato, duas línguas diferentes?
Sim. É preciso ressaltar que a linguística não toma decisões. Quem toma somos nós, linguistas. Cabe a nós dizer, com todas as palavras, em alto e bom som: o português brasileiro é uma língua e o português europeu é outra. Muito aparentadas, muito familiares (fazendo o sotaque lusitano), mas diferentes. Repito: não é um problema “da” linguística, mas dos linguistas. Nós é que vamos ter de decidir se o português brasileiro e se o português europeu são duas línguas diferentes ou não. É inútil esperar que a resposta venha em um formato científico, porque o científico, como algo acima de qualquer suspeita, é uma quimera. O cientista tem de assumir uma postura política e ideológica. Tem de declarar suas explicitamente crenças e seus valores. Não existe ciência neutra. Não existe nada que se faça em sociedade que não seja de forma política. Temos de assumir uma postura ideológica, porque é assim que acontece.
Então, ideologicamente , como acon­teceu nos países da antiga Iugoslávia, não seria mais interessante nos referirmos à nossa língua como “brasileiro”, em vez de “português brasileiro”?
O nome das línguas é uma questão muito complicada, porque depende das questões sociais, políticas, históricas etc. A antiga Iugoslávia se fragmentou em seis pequenos países e a língua que, então era considerada uma só, o servo-croata, agora se chama bósnio, croata, sérvio, montenegrino… Mas, para esses nomes aparecerem, ocorreu uma guerra horrorosa, muitas mortes, uma coisa terrível. A questão do nome atualmente, para nós, não é tão importante. Muito mais importante é afirmar a autonomia do português brasileiro. No Brasil, nós pesquisadores estamos sempre falando “português brasileiro”. Quem sabe daqui a alguns anos, apaguemos o “português” e fique só o “brasileiro”. Mas isso é uma questão eminentemente política.
Na década de 30, houve até uma proposta de lei na Câmara dos Deputados para que nossa língua passasse a se chamar brasileiro. Mas então houve a revolução, Getúlio Vargas tomou o poder e essa proposta foi esquecida. Para nós, professores e pesquisadores, o importante é afirmar essa distinção, essa autonomia da língua.

Nossa diferenciação do português eu­ropeu, com o português brasileiro, não seria como a diferença entre o in­glês americano e o inglês britânico?
Cada país tem a sua história. A história da formação econômica, social e linguística do Brasil é muito diferente da história dos Estados Unidos e da do Québec [maior província do Canadá], por exemplo. As pessoas perguntam “por que você está dizendo que existe o português brasileiro? Existe o espanhol argentino? Existe o espanhol mexicano? Existe o inglês americano?”. Existe, sim. Mas as circunstâncias históricas da formação do português brasileiro são muito diferentes da formação do inglês americano, por exemplo. Basta lembrar que até 1960 era proibido por lei nos Estados Unidos o casamento entre pessoas negras e brancas. No Brasil, desde quando os portugueses vieram para cá faziam a festa com as índias e as escravas, também. Então, a formação étnica da nossa população é muito diferente da formação étnica dos Estados Unidos.
Por isso Caetano Veloso [cantor e compositor brasileiro] diz que nos EUA preto é preto e branco é branco e a mulata “não é a tal”, porque lá não existe mulata. É raríssimo encontrar nos EUA uma pessoa que seja mestiça de branco com negra ou negro com branca, porque até “ontem”, em 1960, isso era proibido por lei. A miscigenação no Brasil foi muito mais intensa e, evidentemente, a miscigenação linguística também. O português foi língua minoritária no Brasil durante todo o período colonial. Falava-se como língua geral o tupi e nossa população, até a época da Independência, era 75% mestiça.
O português só muito recentemente se tornou a língua hegemônica no Brasil. Esses contatos linguísticos do português com as línguas africanas e indígenas é o que configura o português brasileiro, diferentemente do que ocorreu nos Estados Unidos e no Québec. Nosso período colonial começa em 1500; no Québec depois de 1600, portanto, são cento e tantos anos de diferença. Os portugueses vieram para cá explorar, já os ingleses foram para os EUA fugindo da perseguição religiosa. Portanto, foi outro tipo de colonização, são outras histórias.
O que o sr. pensa do tratamento desse conflito entre português de Portugal e português brasileiro na escola? Quando um aluno diz que não sabe português, na verdade, está dizendo que não sabe as normas da gramática do português ensinado na escola.
Daria para falar sobre isso umas três horas. Em nossa cultura linguística, português é essa coisa nebulosa, essa nomenclatura gramatical. Uma pessoa que diz que não sabe português é porque acha que saber português é saber o que é uma oração subordinada substantiva objetiva direta completiva nominal reduzida etc. (risos). Então, como ninguém sabe isso — eu decorei, porque também não sei (risos) —, a pessoa acha que saber português é esse saber esotérico. Isso é uma cultura linguística transmitida pela escola, sem dúvida. No dia em que a nossa educação linguística abandonar esse tipo de trabalho e se concentrar no mais importante, que é letrar as pessoas, colocá-las para ler e escrever para um dia, quem sabe, no ensino médio, descobrirem que a língua pode ser analisada em partes chamadas “substantivo” e “sujeito”, aí sim, vai interessante.
Sabemos que 75% da população brasileira é analfabeta funcional. São 150 milhões de pessoas e, entre elas, estão nossos docentes de língua portuguesa. Não vamos nos iludir: já fiz trabalhos de coletas de textos escritos de professores de português no Distrito Federal, a unidade da Federação com renda per capita mais elevada, e vi que as pessoas escrevem pavorosamente mal. São professores de português formados e na ativa já há bastante tempo. Então, temos aí um grande imbróglio para resolver, a formação docente. Não adianta tentar resolver o que acontece na escola, sem resolver primeiro as questões que envolvem a formação das professoras e dos professores, e claro, as condições de trabalho das pessoas, para que elas não sejam espancadas em praça pública, como aconteceu recentemente no Paraná.
O Brasil, onde eram faladas tantas línguas de base africana e indígena, não poderia hoje ter uma outra língua que não fosse o português? Por que isso não aconteceu por aqui, como houve em outros países latino-americanos hoje bilíngues?
Existiu, durante o período colonial, a chamada língua geral brasileira, que era de base tupi e também se chama nhemgatu e que hoje é falada lá em São Gabriel da Cachoeira. Mas ninguém propôs que ela se tornasse a língua nacional, a não ser Policarpo Quaresma [personagem do escritor Lima Barreto] (risos). Policarpo Quaresma, quando estava no ato sexual, quando chegava ao apogeu, falava “catupiry, catupiry!” (risos), que significa “excelente!” em tupi.
Não dá para impor uma língua de uma hora para outra a um povo. O padrão da língua no Brasil deve ser a língua falada pela maioria da população brasileira contemporânea, que é o português brasileiro — se quiser delimitar um uso mais urbano, letrado, tudo bem, mas tem de ser o português brasileiro.
A língua geral brasileira, como vocês sabem, foi proibida no Brasil no século 18 pelo Marquês de Pombal [dirigente de Portugal durante o reinado de José I]. Se não tivesse acontecido isso, talvez hoje seríamos como os paraguaios, que falam espanhol e guarani — este também uma invenção dos padres jesuítas como uma língua geral, muito parecida com a língua geral brasileira, com base no tupi. Por uma política autoritária, repressora, foi proibido ensinar e falar qualquer coisa no Brasil que não fosse o português. A partir daí, a língua geral foi sendo abandonada e o português acabou se tornando hegemônico.
A militância na academia existe, não há dúvidas. Mas essa posição externada de forma clara, como o sr. faz, não lhe traz dificuldades no meio científico?
Muitas, a tal ponto que estou pensando em abrir uma pousada em Pirenópolis (risos) e sair do meio acadêmico. Como em qualquer lugar, em qualquer ambiente, principalmente em um ambiente que se diz intelectual, existem disputas ideológicas. Há linguistas que acham que fazem ciência pura, inventam uma língua e ficam examinando exclusivamente essa língua. Outras pessoas se debruçam sobre a realidade social, sobre a língua em sociedade e tentam analisar os conflitos, os interesses, as questões de poder, de preconceito, de opressão, que são feitas a partir do uso da língua. Temos alguns sociolinguistas, nem outros, temos os grupos que trabalham com a Análise do Discurso, os que fazem a Linguística Aplicada Crítica — hoje mesmo, para vir aqui, deixei de assistir a uma palestra do professor Kanavillil Rajagopalan [professor de semântica e pragmática da Universidade Es­tadual de Campinas (Unicamp)] na UnB, que está lá, falando exatamente sobre linguística aplicada crítica.
Evidentemente, as coisas variam muito. Algumas pessoas me dizem na cara, outras por trás, outras publicam falando mal. Aí, eu também publico falando mal, porque falo mal com a maior facilidade (risos), no sentido de assumir uma posição crítica e ideológica. Tudo em termos de posicionamento político na academia na área da língua.
Como fica a questão do acordo ortográfico entre os países de língua portuguesa?
Eu prefiro falar sobre “desacordo ortográfico”. Essa questão foi muito interessante para mostrar justamente as posições dominantes em Portugal. Foi um processo catalizador que trouxe à superfície toda a questão da ideologia linguística vigente na cultura dos portugueses. Para os portugueses, no acordo, seria preciso alterar 1% do vocabulário da língua; para nós brasileiros, apenas 0,5%. Essa diferença é suficiente para explodir o mundo várias vezes. Os portugueses dizem que vão abrasileirar a língua, fazem um escândalo total e se opõem ao acordo ortográfico.
Também acho que esse acordo é um grande problema. A melhor solução teria sido as duas formas de escrita valerem igualmente. Isso porque, bem ou mal, elas acabam refletindo questões linguísticas mesmo, fonéticas. Por exemplo, em Portugal, quando escrevemos determinadas letras que consideramos mudas, isso no português europeu significa que a vogal é aberta. Quando escrevemos “diretor”, nós pronunciamos “diretor”; os portugueses escrevem “director” e falam “dirétor”, se o é aberto, aquele c tem de estar ali.
A fonética portuguesa é extremamente complicada. Quem acha que consegue imitar português não consegue, porque a fonética deles é muito mais complicada, tem mais vogais, mais fenômenos consonantais do que o português brasileiro, que é mais conservador nesse aspecto. A grafia para os portugueses ainda traz muita indicações de pronúncia. Então, quando algumas coisas desaparecem com a reforma, para eles isso se torna mais complicado.
De todo modo, é uma questão que está aí para ser resolvida ou não. No Brasil, o acordo já tinha sido implementado oficialmente em 2010, mas agora os senadores — que não têm nada para fazer, porque este País não tem problemas (irônico) — resolveram postergar, pedir um adiamento para que ele entre em vigor. Aí vêm uns idiotas que querem realmente reformular a língua, botar tudo com “x”, com dois “s”, com “z”, com uma série de questões que não têm nada a ver, sem nenhuma fundamentação teórica que as sustente. Está aí o problema. A gente vai escrevendo muitos artigos e dissertações sobre isso, porque vai render pano pra manga.

“Gramática normativa? Importância zero” 

galeriaMas Portugal está cedendo mais e o Brasil cedendo menos nesse acordo?
Eu quis dizer que, segundo as novas regras ortográficas, só meio por cento das palavras escritas no português brasileiro vai sofrer alteração; em Portugal, vai ser 1%. Essa que é a diferença.
Para os portugueses, a diferença fonética é considerável. Não é mais fácil para os brasileiros fazerem concessões?
Não se trata de fazer concessões. Diante das palavras que já existem e estão grafadas na língua, são pouquíssimas as mudanças, se nós aplicarmos o acordo. Nós, que trabalhamos com editoras, por exemplo, quando temos de relançar um livro que foi lançado antes do acordo, temos de passar o texto para o novo acordo. Tirar o acento de “idéia”, retirar o trema. É tão pouco que as regras do novo acordo cabem em uma página, a não ser a palhaçada sobre o hífen — pois é uma palhaçada, legislar sobre o hífen é falta do que fazer, deixe que escrevamos como quisermos: com hífen, sem hífen; uma palavra, duas palavras. Que bobagem! Mas isso não é exclusivo do nosso acordo ortográfico. Eu traduzi, recentemente, um livro de Florian Coulmas, um sociolinguista alemão muito famoso, que se chama “Escrita e Sociedade”, lançado pela Parábola no final do ano passado. O livro tem um capítulo só sobre reformas ortográficas. Ele trata do alemão, do francês e do inglês, mas parece que está falando do Brasil, pois é a mesma coisa. Na Alemanha, eles resolveram fazer uma minúscula, uma ínfima reforma na ortografia. Foi o que bastou para que os jornais se enchessem de cartas de leitores, criaram-se associações em defesa da língua alemã.
A questão da língua faz parte da nossa identidade; a escrita também, pois é um aprendizado demorado, doloroso, leva muito tempo até dominá-la. Então, com qualquer tipo de mudança as pessoas se sentem feridas intimamente. “Ah, vamos tirar o trema de lingüística” — eu mesmo acho horrível escrever linguística, sem trema. Já estava habituado, acho tão bonitinho (risos). E para nós que ensinamos tem uma coisa que precisa ficar claríssima: o importante é a política educacional de um país, o sistema de escrita pouco interessa. Por exemplo, não existe ortografia mais caótica no universo do que a da língua inglesa; no entanto, os países que têm o inglês como a língua materna oficial, têm taxa de analfabetismo de 0,000001%. Se você chegar à Aus­trália, à Nova Zelândia, ao Canadá, ao Rei­no Unido, não vai ver analfabeto. E a língua que se escreve é aquela ma­­luquice. A mesma coisa no francês.
O espanhol, que tem a escrita e a fala muito próxima, quase ideal. Em Cuba tem 100% de gente alfabetizada em espanhol; na Guatemala, são 40% de analfabetos. População de tamanhos semelhantes e a mesma língua. Qual a diferença? Política educacional. Portanto, se vamos escrever com ou sem acento, se é “diretor” ou “diretor”, isso não interessa. Não é que a nova ortografia será mais fácil, isso não tem nada a ver com facilidade: aprendizado da escrita tem a ver com formação do professor e política educacional. Por isso na China, que tem 1,5 bilhão de habitantes, cuja língua é escrita daquela maneira, absolutamente, louca, em que se tem de saber desenhinhos — deve levar a eternidade para aprendê-los —, 99% da população é alfabetizada. A escrita ideográfica é extremamente complexa e, no entanto, as pessoas lá sabem ler e escrever. Por quê? Política educacional de verdade. Enquanto a política no Brasil for um ornamento, enquanto o lema do governo for “Pátria educadora” — “Pátria” é uma palavra que me dá arrepios, pois me lembra ditadura, e “educação” também está na boca de todos, mas na hora de investir, ninguém investe —, enquanto for assim, a coisa não anda. Então, não interessa se se escreve assim ou assado, se vai escrever tudo com x porque é mais fácil… besteira. No francês se coloca um acento circunflexo para dizer que no século 12 tinha um s depois da letra. “Île” [“ilha”, em francês] tem um acento que não serve para nada e todo mundo lá sabe ler e escrever bem.
Essa questão do uso da língua e do poder que se demonstra do uso da norma culta em relação às outras, vemos isso sendo usado inclusive de uma forma diretamente política. Por exemplo, o que se diz do ex-presidente Lula. Uma coisa clássica é o “menas”, que se atribui a ele. Eu não sei nem se ele assim ainda, mas por ele ter vindo de família humilde e ter falado um dia, lá no início da carreira, se atribui a ele o português mal falado. E Lula também usa esse atributo para se dizer mais perto do povo. É uma ação e uma reação, talvez, em relação ao mesmo uso. Que rumo nós tomaremos a partir do que acontece de até hoje termos essa dominância culta inclusive ao português do goiano, que falamos, e das normas a que estamos ligados ou afastados?
Primeiro, eu quero fazer uma declaração de amor, pois Luiz Inácio Lula da Silva é o homem da minha vida. Eu me considero privilegiado por viver na mesma época que ele. Em segundo lugar, é muito curiosa essa questão da língua usada como poder. Na época em que Lula foi eleito pela primeira vez, antes mesmo de assumir, vários jornalistas — e eu ia dizer “jornalistas reacionários”, mas isso é quase redundante no Brasil — começaram a dizer que nas escolas as crianças teriam de aprender a falar como o presidente Lula, sem regras de concordância etc. O mais engraçado foi que uma das jornalistas que escreveram sobre isso, Dora Kramer, ao falar sobre isso também cometeu um erro do ponto de vista da gramática normativa. Então, eu escrevi um livro inteiro só sobre isso, chamado “A Norma Oculta”, de 2003, falando exatamente dessa manipulação das questões de linguagem. A pessoa que já está no topo da “cadeia alimentar” acha que pode falar da maneira que quiser, mas quem está lá embaixo não pode. Para quem está no topo é “licença poética”, aqui embaixo é erro mesmo. Portanto, quando houve a disputa entre Lula e Fernando Henrique Cardoso, Ruth Escobar [atriz] escreveu um texto chamado “O encanador e o sociólogo”, mostrando que os erros de Fernando Henrique eram atribuídos a essa licença poética: “Ele sabe tanto que pode errar”. E com Lula, não: “É erro mesmo”, pois é ignorante, nordestino, operário. Esse é o famoso princípio de Getúlio Vargas: “Para os amigos tudo, para os inimigos, a lei”.
A atribuição do rótulo de “certo” e “errado” depende muito de quem lança esse rótulo e de que lugar na hierarquia social essa pessoa se encontra. Muito do que é considerado errado está começando a subir na hierarquia social e sendo usado por pessoas altamente letradas. Por exemplo, se o ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Carlos Lessa, que foi presidente do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], diz “tornou-se possível fatos” é porque isso já virou uma regra. Se daqui a pouco — é um teste que eu vivo fazendo — apresentarmos essas construções a estudantes de Letras e a professores de português, para eles isso vai estar 100% correto, pois já está enraizado na gramática do português. Portanto, a noção de certo e errado varia com o tempo e tem a ver também com os processos de mudança.
Qual seu entendimento sobre a importância da gramática normativa hoje e como o sr. acha que deveria ser o ensino de português para os brasileiros?
Importância da gramática normativa: zero. Como deveria ser o ensino? Bom, as pessoas que se dedicam às questões pedagógicas do ensino de língua tem dito cada vez mais que a coisa mais importante é ensinar a ler e a escrever. Se nós conseguirmos ensinar as pessoas a ler e escrever faremos uma revolução cultural no Brasil. Como se ensina a ler e a escrever? Eis uma grande descoberta: lendo e escrevendo. Uau! (risos)
Como era o ensino tradicional, baseado na gramática normativa? Primeiramente, tem de aprender toda aquela nomenclatura confusa, caótica e contraditória, para um dia, quem sabe, começar a ler e a escrever. Então, a criança mal foi alfabetizada e já no primeiro ano começa a aprender sobre dígrafo, separação silábica, oxítona, paroxítona e tudo o mais. Para quê? Para nada. Portanto, o certo seria, pelo menos nos nove primeiros anos de escola, ter leitura e escrita, leitura e escrita e —– porque é inevitável —– reflexão da língua. É impossível trabalhar com leitura e escrita sem levar a pessoa a refletir sobre o que está acontecendo.
É possível conscientizar o estudante sobre os fenômenos linguísticos sem entupir a cabeça dele com teoria gramatical tradicional. Se tomarmos a coleção didática da Magda Soares, que se chama “Português, uma Proposta para o Letramento”, que é toda baseada em leitura, escrita e reflexão sobre a língua, ali não tem nada de nomenclatura gramatical, mas tem tudo de gramática. Por exemplo, ela diz: “Vejam, para expressar ideias contraditórias nós temos as seguintes possibilidades: ‘embora’, ‘apesar de’, ‘porém’ etc.” Então, ao invés de esquartejar a língua em classes gramaticais, Magda trabalha com os recursos que a língua oferece. Pois, se partirmos apenas para classe gramatical, não poderemos mostrar que “embora/apesar de/porém” e outras construções servem para expressar oposição de ideias. Temos que partir dessas questões do uso da língua para a pessoa se conscientizar e usar. Meu exemplo preferido é a oração subordinada substantiva objetiva direta reduzida de infinitivo. O que é isso? É assim: “Vânia disse que gosta mais de cinema do que de teatro/Vânia diz gostar mais de cinema do que de teatro”. Então, para esse “que gosta” e esse “gostar”, o mais simples é levar uma pessoa a refletir sobre essa transformação, de “ela disse que gosta” para “ela disse gostar”. Para fazer isso, você dá exemplos e mostra como ocorre essa mudança sintática, sem precisar levar a pessoa a decorar que isso é uma oração subordinada substantiva objetiva direta reduzida de infinitivo. Essa é a diferença. É impossível ensinar a ler e a escrever sem ensinar gramática; porém, não é preciso essa gramática nesse sentido tradicional, de esquartejar frases ridículas tiradas do bolso e fazer classificações. É refletir sobre a língua em uso, a partir de textos autênticos e, para isso, nenhuma gramática normativa serve — principalmente porque, se ela é uma gramática normativa, ela é baseada no português europeu, escrita no século 19. Nem para Portugal serve mais.
A formação do professor de Letras está cada vez mais restrita. Falam em linguística “hard” e linguística “soft”. Isso parece prejudicar essa formação.
Por isso é que digo que minha saída é abrir uma pousada em Pirenópolis (risos). Eu escrevi um texto chamado “Curso de Letras, Pra Quê?”, por que a coisa já começa pelo nome: “Letras”, em 2015? Essa ideia de Letras é muito do século 19, das Belas Letras, quando se aprendia francês e literatura clássica — literatura contemporânea jamais. Esta noção de letras está muito ultrapassada. A gente deveria falar em “ciência da linguagem”. Outro problema é que no Brasil, como há na vizinha Argentina — que tem uma educação tradicionalmente muito melhor do que a nossa —, professores de Línguas deveriam se formar em escolas de formação de professores de línguas. Depois, se quiser, vai fazer Letras na universidade. Essa história de formar professor na universidade é que não dá certo, porque entram no pacotão da universidade, fazendo disciplinas como Física Quântica 3, Sociologia 8, coisas interessantíssimas, mas não para o professor que terá de enfrentar sala de aula.
Na Argentina, há um curso chamado professorado, no qual a pessoa sai apta a lecionar após passar por professores de espanhol, português e outras línguas, em um curso de três anos. Depois, se quiser, pode fazer o curso de Letras, que não é nada parecido com o nosso. É barra pesada: não é só ler um artigo de Bakhtin [linguista russo] ou um resumo de Saussure [linguista francês], tem de ler a obra completa dos autores todos, fazer resumos e seminários. É universidade de verdade. Aqui, a gente tem esse misto de formar pesquisador e professor em um indivíduo só. O que ocorre é que muitos professores não sabem fazer análise de um livro didático, ou um documento oficial sobre diretrizes educacionais. Tinham de saber não só para absorver, mas também para criticar. Mas não ensinam isso em uma universidade. Falta uma “implosão” dessa coisa chamada Letras para se construir outra no lugar. E, como esse Congresso que a gente tem, estou mesmo pensando nessa pousada em Pirenópolis. (risos)
Aqui em Goiás costumamos dizer que falamos o goianês, uma mistura do mineiro com, talvez, uma parte da Bahia. Tínhamos em Geraldinho Nogueira, um caipira autêntico que por anos fez propaganda para a Caixego [Caixa Econômica do Estado de Goiás, banco liquidado em 1990], um representante dessa “língua” particular. Muita gente que vem de fora não entende o “goianês”. Existe no Brasil hoje regiões realmente mais distantes do português brasileiro “médio”, vamos dizer assim?
Existe um postulado da sociolinguística que diz que toda língua é um feixe de variedades. Portanto, a palavra língua, ao contrário do que o senso comum pensa, não se refere a um bloco homogêneo. Língua é um substantivo coletivo. É feito um rebanho e, quando você pensa em rebanho, você pensa em 50 mil vacas. Com a língua é a mesma coisa. Imagine 200 milhões de falantes brasileiros, cada um desses com sua língua própria — a que chamamos de idioleto —, cada um com a língua de sua família, de sua comunidade, de sua região, de sua cidade, de seu Estado. Portanto, a língua varia em todos os aspectos; pela idade, pelo sexo, pelo gênero, pela orientação sexual, pela etnia, pelo grau de escolarização, se mora na cidade ou no campo, pelo universo da pessoa. Evidentemente, em cada região e dentro de cada região, encontram-se variações. Em uma cidade como São Paulo — que não é uma cidade, é um monstro — há 20 milhões de habitantes, o dobro da população de Portugal (e, abrindo parênteses, por isso eu penso: por que ficar se submetendo a Portugal, se só em São Paulo temos o dobro da população de lá?). Fala-se mais português em São Paulo que na Europa inteira. Em cada bairro de São Paulo, você encontra peculiaridades na fala. Na periferia é de um jeito, nos bairros tradicionais de colonização italiana, de outro. E é a mesma coisa em Goiás. Não existe um “goianês”, existem vários. Por exemplo, na região mais próxima ao Triângulo Mineiro, que já foi Goiás, existe uma similaridade cultural, culinária e linguística entre o Triângulo e esse Sul de Goiás. Já no Oeste de Goiás, mais próximo da Bahia, em Posse, por exemplo, já é bem diferente. Pois, a língua varia de acordo com a sociedade e de acordo com o clima, com a ecologia, com o que as pessoas comem, um pacote grande. É muito curioso também que, apesar disto, exista no Brasil certa unidade em vários traços, e no vocabulário também. É muito engraçado porque, em determinados lugares, as pessoas me trazem, por exemplo, o dicionário do alagoano, o dicionário do sergipano, mas no final das contas 25% apenas é próprio daquela região. Tem coisas que se encontra no Rio Grande do Sul e no Amapá. Mas como as pessoas do Rio Grande do Sul nunca vão ao Amapá, porque é longe, é do outro lado do País, não têm ideia de que lá também eles dizem “engastalhar”, por exemplo. Este tipo de coisa exige pesquisa; por isso, temos agora um atlas linguístico do Brasil. Desde o final do século 19 existe uma disciplina, que se chamava dialetologia e hoje se transformou em geolinguística, que estuda precisamente a variação da língua de acordo com os lugares. Isso se faz por meio de mapeamento. Quando se trata de língua, temos sempre duas coisas em conflito: o senso comum e a pesquisa fundamentada. Pelo senso comum, o goiano fala muito diferente do pernambucano. Mas não fala, só um ou outro traço prosódico ou fonético. Na gramática, no léxico, tudo é muito mais parecido do que o que a gente pensa.
Sua visão quanto a termos o português brasileiro é suficiente no ponto de vista cultural ou é uma questão puramente ideológica? Há base cultural para se fazer essa “independência”?
No ponto de vista gramatical está comprovado que sim. Mesmo que um português compreenda um brasileiro, há diferenças de interpretação. Um exemplo como “minha bermuda está lavando” nunca aconteceria em Portugal, não faz parte da gramática da língua deles. É um exemplo mínimo, trouxe aqui apenas um fenômeno, que é a questão da ordem das palavras. Mas têm outros, como a conjugação verbal, termos de pronomes, regências verbais. Há vários outros fenômenos que distinguem claramente o português europeu do brasileiro, apesar de que, na aparência, na escrita, acharmos que é a mesma coisa.
Na fala, já sabemos que são línguas muito diferentes. Eles nos entendem, porque falamos de uma maneira mais lenta, mais pausada, temos um ritmo silábico. O português europeu é classificado como língua de ritmo acentual: tomam-se várias palavras e juntam-se todas, como se fosse uma só. É outra língua até no ponto de vista da estrutura fonética, eles têm vogais que nós não temos. Eles têm vogais que não fazem parte do português brasileiro, o que fica muito claro em palavras como “revolução” ou “gente”. Eles dizem “achetoras”, não “às sete horas”. Se pegarmos o discurso de um português dizendo espontaneamente, se entende alguma coisa, mas também se perdem outras. Muitos brasileiros dizem que entendem mais o espanhol do que o próprio português europeu.
Falei, então, do ponto de vista estrutural. Já do ponto de vista ideológico, é assumir que sim ou que não. Como as línguas estão neste momento de diferenciação, algumas pessoas pesam mais ideologicamente na semelhança. Há muitas pessoas que dizem que há muita semelhança entre o português europeu e o brasileiro, por isso dizem que é a mesma língua. Outras, como eu, pessoalmente, pesam mais pelo ponto de vista interno, motivar a que as pessoas olhem para sua língua de forma mais particular. Acho que temos de ter uma cultura de autoestima linguística. É, então, uma questão ideológica.

Professor Marcos Bagno falao aos editores Marcos Nunes Carreiro e Elder Dias: “Língua é substantivo coletivo”
Professor Marcos Bagno fala aos editores Marcos Nunes Carreiro e Elder Dias: “Língua é substantivo coletivo”

Por conta da ascensão econômica brasileira nos últimos anos, há um interesse de muitas pessoas de fora de aprender o português brasileiro. Como fica então, por exemplo, no Timor Leste, onde há professores portugueses e brasileiros ensinando a língua portuguesa ao mesmo tempo. Que tipo de língua portuguesa está sendo criada fora do Brasil?
Isso é uma questão que chamamos de política linguística. O Brasil não tem tradicionalmente uma política linguística. A difusão do português brasileiro no exterior ocorre quase por inércia, mais pela importância que o Brasil vem assumindo geograficamente, geopoliticamente e economicamente. Portugal, ao contrário, tem uma política linguística, tem o Instituto Camões, com mais de mil professores espalhados pelo mundo todo, enquanto o Brasil tem 40 leitorados. Cria-se aí, já, uma diferença.
No México, se interessam mais pelo português brasileiro, mas há mais presença de professores portugueses do que brasileiros.
Exatamente. A Universidade Autônoma Nacional do México é o lugar onde se há mais gente estudando português no mundo. Só que o governo brasileiro quase não investe lá, manda só um leitor. Enquanto isso, o Instituto Camões tem um andar inteiro lá. Mandam livros didáticos, mandam professores, dão bolsas de estudos para os alunos mexicanos irem a Portugal. Os europeus não estão errados, estão certíssimos. Nós que tínhamos de ter uma política linguística mais agressiva, mas temos uma posição de colonizados, de que, se Portugal já está lá, não precisamos ir. Precisamos, sim. Nós somos 90% de quem fala português no mundo e somos a 7ª economia mundial. Portugal, ao contrário, está no fundo do poço, com essa crise horrível que acontece por lá. Nós que temos de investir e brigar pelo nosso espaço, porque as pessoas de fato querem aproveitar as oportunidades que nós oferecemos.
Não é uma vergonha o Brasil não ocupar este espaço linguístico na América Latina?
É verdade. Mas o mesmo ocorre com o espanhol. No Brasil, existe o Instituto Cervantes, que é da Espanha. A gramática é feita na Espanha, tudo vem de lá. E nós não temos um instituto linguístico de grandes países latino-americanos, como Peru, Argentina, Colômbia ou México. Esses grandes países de língua espanhola poderiam investir mais nesse sentido.
O sr. concorda que, se Machado de Assis tivesse nascido em um país cuja língua tivesse importância maior, com certeza estaria em outro plano mundial?
Se ele tivesse sido espanhol, com certeza seria muito mais difundido. Quando os estrangeiros descobrem Machado de Assis, não acreditam. Eles dizem que não é possível ser tão fantástico. É um escritor único.
O português na Europa é tido como uma língua de segundo escalão, abaixo do inglês, do francês, do alemão e do espanhol?
O português na Comunidade Europeia é realmente uma língua de segundo plano. Portugal tem a mesma população da Hungria. Então, o húngaro e o português têm o mesmo status, assim como o grego. São línguas oficiais da comunidade, mas quem realmente manda é o inglês, francês e o alemão — o inglês mais ainda.
Existem posições políticas quanto a isso na Europa. A Catalunha, por exemplo, adota um discurso forte em termos de sua língua. Os jornalistas brasileiros que vão para Barcelona cobrir o futebol de lá são praticamente obrigados a aprender catalão. Por que isso não “pega” no Brasil?
É questão do colonizado. Mesmo países colonizados, como os Estados Unidos, têm uma posição muito diferente diante da língua. Eles criaram, logo após sua independência, a expressão “American english”, e elaboraram um dicionário com os hábitos linguísticos de lá, que já existiam. Isso, no Brasil, até agora não aconteceu. Quando se fala em português brasileiro as pessoas reagem, chamam isso de “nacionalismo babaca”. São as diferenças de formação histórica: lá, eles pegaram em armas e colocaram os ingleses para correr. Aqui não, foi o próprio príncipe regente que teve um ataque histérico e declarou a independência. A população nunca teve participação ativa nos grandes momentos de nossa história. A libertação dos escravos foi decretada de cima para baixo; da mesma forma, a proclamação da República e a independência, também. Isso continuou até o fim da ditadura militar, tudo tramado de cima para baixo. Por isso há essa revolta toda quando um governo tenta fazer uma gestão de centro-esquerda. Nossa elite escravocrata não suporta essa ideia.

 Retirada de: Jornal Opção

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